Novidadeiro – O pop sem rosto da Sia

Sia: de "operária" do pop a estrela incógnita

Sia: de “operária” da música a estrela “incógnita” do pop

Pra mim a Sia é um dos fenômenos mais interessantes da história recente da música pop. Nascida Sia Kate Isobelle Furler (em 1975, na Austrália), a cantora e compositora – ainda pouco conhecida no Brasil – é uma das mais influentes forças criativas por trás da estética atual do pop comercial estadunidense. Esse vídeo demonstra um pouco melhor a importância da moça, reunindo canções pop de sucesso recente que foram compostas por ela e gravadas por “medalhões” das paradas de sucesso radiofônico. Mas o fato relevante aqui é que essa ilustre “desconhecida” do público em geral recentemente resolveu se arriscar mais uma vez como artista popular, colocando na praça um disco totalmente composto e interpretado por si mesma. E digo “mais uma vez” porque, paralelamente ao seu trabalho como compositora, na primeira década dos anos 2000 Sia lançou nada menos que seis discos autorais que foram promovidos de maneira no mínimo preguiçosa pelas gravadoras com as quais ela havia assinado – trabalhos que foram recebidos com pouca atenção pela crítica especializada e com ainda menos entusiasmo pelo público consumidor.

Mas eis que, no fatídico ano de 2014, em um movimento digno de uma verdadeira fênix da música, a australiana não só conseguiu gestar uma autêntica obra-prima pop como também surpreender todo mundo reinventando a significação de sua própria imagem e provocando uma quebra de paradigma emblemática na relação entre público, mídia e artista. De maneira planejada ou não (só podemos especular), a cantora passou a se apresentar como uma figura misteriosa, se recusando a mostrar o rosto e a associar sua imagem ao seu trabalho musical. Em entrevista concedida à revista Billboard (2013), ela divulgou um manifesto anti-fama em que explicitou as razões para se preservar da atenção voraz do público (em suma, as supostas mazelas já tão exaustivamente comentadas da popularidade – invasão de privacidade e etc.), ao mesmo tempo em que preparava o terreno para a divulgação de sua próxima criação: o álbum 1000 Forms of Fears (2014; RCA), registro cru, emocionante e sedutor de uma poderosa e renomada entidade criativa completamente no controle de sua própria obra.

Nessa nova fase de sua carreira, em consonância com o manifesto publicado na Billboard, Sia simplesmente – e surpreendentemente, para os padrões comerciais atuais – eliminou quase completamente a exposição pública de sua figura na promoção do novo disco (basta ver a capa do álbum pra entender), utilizando recursos interpretativos incomuns tal qual a presença de uma bailarina pré-adolescente – Maddie Ziegler (ver os vídeos abaixo) – como uma espécie de dublê protagonista das performances ao vivo e dos videoclipes  das canções produzidos para a divulgação do álbum, enquanto a própria cantora simplesmente não aparecia (no caso dos videoclipes) ou apenas permanecia plantada no canto do palco, cantando de costas para a platéia (nas apresentações ao vivo; como nessa aparição no programa da Ellen DeGeneres). E ao exercitar essa opção por uma exploração radicalmente reservada de sua imagem – ciente das implicações ou não -, a artista acabou por chamar ainda mais a atenção da crítica especializada e do público médio. “Que porra é essa, uma cantora que não mostra a cara?”, pareciam perguntar os acostumados à dinâmica que já pressupõe a figura do artista como componente indispensável da magnitude e instrumento de reverberação de sua produção.

Mas, procurando neutralizar todo o peso desse recurso estilístico/midiático empregado pela Sia,  vamos à análise objetiva do produto discográfico que ela botou no mundo. Ao longo do – ótimo, confesso, já resumindo minha avaliação – álbum, Sia derrama todo o seu talento obviamente acima da média em letras claramente mais inteligentes do que aquelas com as quais costumamos topar na música pop atual e em vocais extremamente competentes e carregados de nuances interpretativas e contornos emocionais (inúmeras vezes é possível notar “escorregadas” claramente propositais no desempenho vocal – passagens em que a cantora ‘falha’ na execução servindo a um poderoso e comovente componente estilístico e narrativo). São 12 faixas em 1000 Forms of Fears, sendo que pelo menos oito delas imediatamente saltam à atenção pelo potencial melódico/dramático.

Destaque evidente para “Chandelier”, faixa de abertura e carro-chefe do disco com sua soberba carga dramática (veja o clipe abaixo, protagonizado pela já citada Maddie Ziegler e sua dança interpretativa), para a energia upbeat de “Hostage” (composta em parceria com o guitarrista do Strokes, Nick Valensi), para o épico “Elastic Heart” (que ganhou clipe estrelado pelo ator Shia LaBeouf e, novamente, pela dançarina mirim Maddie Ziegler – ver a seguir) e para a canção que a Rihanna daria tudo para interpretar, “Fire Meet Gasoline”. O álbum (que ostenta uma enigmática capa composta por um fundo preto ornamentado somente pelos contornos do penteado loiro platinado que virou uma espécie de marca registrada da Sia, ainda que ela não mostre a cara) transcorre agradavelmente ao longo de seus quase 50 minutos. Trata-se de um disco descaradamente pop, mas sensivelmente acima da média, com potencial para cativar até mesmo o mais enjoado dos ouvintes (note-se que O musicólogo aqui, por exemplo, não é particularmente um apreciador desse tipo de som, como você já deve ter percebido).

Não se surpreenda caso você se pegue escutando 1000 Forms of Fears no repeat. O disco que serviu de veículo para a reinvenção da artista Sia tem detalhes que desabrocham e contornos que soam cada vez mais harmônicos e inteligentes a cada audição. É uma obra “pop descartável” contraditoriamente reaproveitável (com o perdão do paradoxo). Mesmo em uma encarnação natural de produto para consumo rápido e rasteiro, o álbum dá sinais de um potencial longevo que só se apresenta em obras forjadas no calor do talento inquestionável e da rara e inequívoca vocação para a narração quase fotográfica dos dramas contemporâneos.

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About O musicólogo

Musicologia é o estudo científico ou mesmo a ciência da música. Considera-se musicologia a atividade do musicólogo enquanto ofício do pesquisador em música, diferenciando-se das outras duas grandes áreas da música: a invenção (ofício do compositor) e a interpretação/performance (ofício do instrumentista, cantor ou regente).

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